quinta-feira, 19 de maio de 2016

O Fim da Linha do Tua: entre zêlhas, cornalheiras e oxicedros, uma despedida a um rio (ainda) selvagem

O rio Tua (ainda selvagem) e seu vale, num trecho que ficará submerso acima do local onde foi tirada a foto.

"Longe da vista, longe do coração", diz um ditado português. Durante anos evitei pensar na morte anunciada do rio Tua enquanto rio selvagem e na submersão dos primeiros 20 quilómetros da linha ferroviária de montanha que percorriam o vale, a Linha do Tua. Não tinha tido o prazer de fazer o percurso de comboio e nunca tinha visitado o rio. Fui seguindo as notícias com algum distanciamento, dando o meu contributo cívico para tentar evitar o destino que se adivinhava, mas sempre à distância.


Este meu 'estoicismo' no entanto não resistiu ao anunciado encerramento das comportas da barragem para muito breve. De repente, tornou-se urgente para mim ir ver, ir presenciar, ser testemunha e a distância de 450 kms que antes me tinha servido de justificação pareceu-me subitamente mais curta. Juntou-se a esta sensação de urgência a conjugação de condições climatéricas únicas, um fim-de-semana de sol mas com alguma nebulosidade, sem temperaturas muito altas, que se seguia a um período prolongado de chuva. O rio estaria a correr com força pela última vez. O ar transparente e límpido. A vegetação em pleno vigor primaveril. Tive que ir.

Fui no limite do tempo. Consultei vários sítios na internet com informação, em especial o blog "A Linha é Tua" onde encontrei tudo o que precisei. Se quiserem ir, recomendo que consultem. Decidi-me pelo percurso Fiolhal-Brunheda, para deixar o paredão pelas costas e subir o rio, afastando-me do seu destino, como que a tentar devolver ao vale a sua dignidade. Junto com o meu companheiro e um pequeno grupo de amigos fizémo-nos à estrada. Dois de nós deixámos o carro na Brunheda e juntamo-nos aos restantes no Fiolhal recorrendo a um táxi de Pombal. E começámos a muito esperada caminhada. Faço um relato do que encontrámos.

Sobreiros cortados na desmatação em decurso até à cota de enchimento.
Aos 20 primeiros quilómetros da linha foram já retirados os carris e as travessas de madeira, obrigando a caminhar sobre cascalho pouco compactado, aumentando bastante a dureza física do percurso. A desmatação necessária ao enchimento da albufeira vai avançada, cortando bosques de sobreiros e azinheiras, olivais, galerias ripícolas e alterando a beleza da paisagem. Já não pude observar o vale no seu esplendor mas por um lado talvez isso venha a tornar menos dolorosa a concretização da destruição que se segue.

Encontrámos também já dois túneis do percurso - Fragas Más II e Falcoeira atulhados e intransponíveis, tornando o percurso entre Fiolhal e Brunheda impossível de realizar sem ultrapassar estes dois obstáculos de forma alternativa, o que, por razões de segurança, só deverá ser tentado por pessoas que estejam em boa forma física, tenham experiência de montanhismo e reservem muito tempo para realizar o percurso. E mesmo assim, todo o cuidado é pouco. O nome do túnel das Fragas Más deverá ser esclarecedor.

As alterações na linha decorrem agora a todo o vapor, as máquinas estavam estacionadas ao longo do percurso. Será cada vez mais imprevisível tentar efectuar os primeiros 10 quilómetros do vale a partir de Fiolhal. Em alternativa pode partir-se da Brunheda em direcção à foz do Tua, ir até ao Túnel da Falcoeira e regressar. Mesmo assim, são 20 kms de percurso circular, uma caminhada difícil por si só no actual estado da linha, com o cascalho apenas parcialmente compactado e sem as travessas de madeira para servir de apoio. É contar com pelo menos 5 horas se estiverem em boa forma, mais se quiserem parar e desfrutar da paisagem. E muita água (recomendo mínimo de 1,5 Lt).

Tudo isto dito estou muito feliz de ter ido e ter feito o percurso. Apesar das desmatações que avançam, apesar de todos os trabalhos de maquinaria pesada que são já evidentes, apesar da dureza de ter ultrapassado os túneis atulhados pelas encostas e do desgaste dos quilómetros sobre cascalho, apesar da tristeza de saber que tudo aquilo em breve estará debaixo de água e perdido, apesar disto, sinto o meu espírito elevado por ter feito a caminhada Fiolhal - Brunheda pela primeira e última vez na vida. Fui celebrar um vale prestes a ficar debaixo de água e testemunhar o desaparecimento de um trajecto único. Acho que a Linha do Tua, que o vale do Tua, merecem ter testemunhas. Sinto alguma paz por ter lá estado, ter sido parte, mesmo que apenas por uma longa tarde comungada entre amigos, num cenário marcante e belo.

Fui, ainda, surpreendido pela vegetação, mais rica e vigorosa do que antecipava. Entre sobreiros caídos e outros ainda em pé, presenciei pela primeira vez uma comunidade botânica que não conhecia. Não foram nem uma, nem duas mas logo três as espécies de árvores silvestres que raramente tinha observado anteriormente e nunca em conjunto, como se o fim anunciado me quisesse atormentar um pouco mais. Comecei por ver cornalheiras Pistacia terebinthus, de vários portes e tamanhos, com a nova folhagem, brilhante e sedosa, daquele verde que só se vê durante os curtos dias que demoram as folhas a sair das gemas de Inverno, crescerem e começarem a acumular os compostos que as escurecem e que as irão proteger dos insectos e da secura do Verão. O brilho e exuberância da folhagem nova da Primavera são tão únicos quanto efémeros. E ali estavam em abundância porque em contraste com a mais comum aroeira Pistacia lentiscus que pertence ao mesmo género e é de folha perene, a cornalheira é uma pequena árvore de folha caduca. Nunca tinha visto tantas.
A rica vegetação natural num trecho que ficará debaixo de água e que será desmatado.

Passei depois a ficar fascinado com árvores de folhagem algo pendente, claramente coníferas, que ia vendo nas encontas íngrimes da outra margem. Quem teria plantado coníferas em locais tão inóspitos? Faziam lembrar larícios ou ciprestes. Não me ocorriam espécies autóctones com aquela fisiognomia. O que seriam? Finalmente, ocorreu-me, poderiam ser oxicedros?! Não os conhecia, mas poderiam ser! Deparei-me rapidamente com exemplares na minha margem que ainda tinham resistido à desmatação e eram mesmo oxicedros Juniperus oxycedrus, o zimbro mais arbóreo que existe em Portugal. Que incrível.

Oxicedros nas encostas do rio Tua, com um porte característico de conífera e folhagem algo pendente.
E para completar o que rapidamente se revelava um paraíso botânico, por entre as cornalheiras deparei-me com zêlhas Acer monspessulanum, uma pequena árvore, um bordo, bastante rara cá para Sul, com alguns perdidos na Serra de Montejunto e na Serra da Arrábida. E ali estavam, um sem número de exemplares ao longo do rio, ao meu alcance. A zêlha tem um um significado especial para mim e para este blog, tendo as suas folhas servido de base ao logotipo da Loja de História Natural.
Uma zêlha, com as suas folhas características.
Ainda sorrio com o travo agridoce da experiência: zêlhas, cornalheiras e oxicedros, uma estreia pessoal, o esplendor da diversidade botânica das terras quentes transmontanas, quase demasiado bom para ser verdade. E era demasiado bom. Em breve as características únicas do vale desaparecerão e com elas esta comunidade botânica. Trágico.
Um oxicedro, ou zimbro-galego, de porte significativo, cortado já a uma grande distância do rio. Chegará a albufeira aqui?

Não quero com isto retirar mérito aos frondosos e imponentes sobreiros que se adivinhava terem ladeado a linha em vários trajectos. Na sua maioria tinham sido já cortados até à cota de enchimento da albufeira, os seus troncos acumulados em pilhas, a aguardar recolha pela maquinaria que pelo menos neste dia, um Domingo, descansava. Teria sido um inferno fazer o percurso sobre o som das máquinas. Sem elas, o silêncio da água que corria com força, dos nossos passos no cascalho, do vento na vegetação, da passarada, permitia ao nosso cérebro fingir que ali tudo seria como sempre foi durante muitos anos e por muitos mais que viriam.
Já sem carris e sem travessas de madeira, a beleza da linha continua única.
Para o final, a dureza do percurso foi pouco-a-pouco tomando conta das nossas percepções, limpando o cérebro de pensamentos errantes, focando-nos no passo seguinte, nos passos que faltam, na água que acaba, no dia que aqueceu um pouco mais naquele vale afundando do que aquilo que esperávamos. Primeiro foi o impacto de ter que voltar para trás logo ao quilómetro 5,6 da linha quando, após termos atravessado sem incidentes os primeiros dois túneis, protegidos por portões com redes, mas não trancados, nos deparámos com surpresa com o primeiro dos dois túneis entulhados que viríamos a encontrar. Atravessávamos um trecho do vale de enorme intimidade, de curva e contracurva, vistas curtas, o rio feroz lá em baixo, isolados do mundo e rodeados de uma beleza natural estonteante. Ter de voltar para trás pareceu-me cruel.

O local impedia alguma pequena manobra de desvio. Acabámos por decidir subir a encosta uma centena de metros antes do túnel, por um percurso ondulante que se adivinhava por entre rochedos. Foi uma subida exigente, apesar dos belos oxicedros e sobreiros que nos recebiam. Ainda sem certezas, só após uma boa subida optámos por tentar descer de novo à frente do túnel atulhado. O desvio custou-nos uma hora para fazer 50 metros da linha. E muita energia e água. Mas re-animados por termos ultrapassado este obstáculo seguimos viagem, esperançados que o próximo e último túnel não estivesse ainda atulhado.

Ribeira de montanha, a convidar a banhos, mas o tempo era curto. Ficará debaixo de água.
Continuámos a caminhada, a gozar da companhia, da paisagem e do belo dia. A curva para o túnel da Falcoeira, ao quilómetro 9,2, como que a brincar connosco, apenas permitiu ver a sua entrada já atulhada a poucos metros da mesma. Voltar para trás seria agora não cruel mas impensável. O terreno parecia menos agreste e contornámos o túnel pelo lado do rio. No caminho, as ruínas de uma casa em pedra, perdida, como eu me sentia algo perdido no espaço e tempo. O que ali teria havido, quem ali teria vivido, em local tão escondido e de difícil alcance?
Ruínas de antiga habitação. Quem aqui terá vivido?

Foram mais 20 minutos a contornar um segundo - mas último - túnel atulhado. A caminhada que pensámos conseguir fazer em 5 horas alongava-se no tempo. O cansaço começava a fazer-se sentir. Ainda tínhamos 12 quilómetros de cascalho pela frente.



Marcámos um ritmo acelerado e seguimos. Pouco a pouco o caminho transformáva-se numa provação física, a mente abandonava a beleza do percurso e concentrava-se no passo seguinte. O vale do rio Tua, a correr selvagem e forte lá em baixo, exigia um sacrifício por se ter mostrado. As suas águas, ainda selvagens, a banda sonora que nos acompanhava.


Chegámos, após mais duas horas a caminhar, à estação da Brunheda, transformada em estaleiro. Aguardáva-nos um buxo Buxus sempervirens arbóreo, como poucas vezes se vê. Existe buxo silvestre no vale do Tua mas não tive a sorte de encontrar esta espécie durante a caminhada. Fizemo-nos à estrada para a derradeira subida - íngreme! longa! - até Brunheda onde tinha ficado o carro. No total demorámos cerca de 7 horas a fazer todo o percurso. Estávamos exaustos. 

E foi assim a minha experiência do vale e da Linha do Tua. Sinto-me satisfeito e feliz por ter ido ver. Para guardar memória do que ainda é.

O fim do dia, da caminhada e das nossas energias, no cimo do vale, na Brunheda.

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