domingo, 21 de agosto de 2016

A publicidade enganosa à Reserva da Faia Brava - a Faia Brava não é a primeira área protegida privada de Portugal

Na página da ATN-Associação Transumância e Natureza dedicada à Reserva da Faia Brava pode ler-se o seguinte:

«Em 2010 a Reserva da Faia Brava foi classificada pelo Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB) como a primeira Área Protegida Privada do país (...)».

Já na página do ICNF-Instituto da Conservação da Natureza e Florestas pode-se ler o seguinte:

«Em 2010, parte da área foi classificada como a primeira Área Protegida Privada (APP) de Portugal (...)».

Se é verdade que a Reserva da Faia Brava foi a primeira a solicitar e obter o reconhecimento pelo então ICNB como área protegida privada já não o é que seja a primeira área protegida privada do país. São coisas muito diferentes.

O mito de que a Faia Brava é a primeira área protegida privada de Portugal tem sido repetido sem ser questionado, e voltou a ser o caso hoje num artigo publicado na Wilder. Esta frase contitui para mim publicidade enganosa que deveria envergonhar a ATN, e não é o sustento que obtém pelo ICNF nesta afirmação que a torna menos errónea. Por há vários anos me sentir indignado com o que ali está escrito, resolvi, desta vez, apresentar aqui as minhas razões para esta indignação para que possam ajuizar do seu valor.
 
Sejamos claros: a Faia Brava não é a primeira área protegida privada do país. Muito antes da ATN existir já associações como a Quercus e a LPN-Liga para a Protecção da Natureza, por exemplo, com os seus projectos no Tejo-Internacional e Castro-Verde, possuiam áreas protegidas privadas geridas exclusivamente para a conservação da natureza e deveria envergonhar a ATN querer por-se em bicos de pé e tentar apagar o trabalho destas outras organizações. A área protegida privada da LPN em Castro Verde, por exemplo, teve início em 1993. A área protegida privada do Monte Barata da Quercus teve a sua génese ainda anteriormente, no final da década de 1980 e o trabalho ali desenvolvido viria a contribuir significativamente para a classificação do Parque Natural do Tejo Internacional em 2000. Tudo isto entre 15 a 20 anos antes da Faia-Brava ser a "primeira".

Então o que é aconteceu? Em 2008 foi criada legislação, operacionalizada em 2009, que permite pedir o reconhecimento estatal de áreas protegidas privadas. Mas esse reconhecimento não cria o conceito de áreas protegidas privadas, é por elas já existirem que se avança com legislação para as reconhecer, nem sequer trás qualquer alteração à gestão das áreas em causa. Apesar de o ICNF tentar tomar posse da sua designação em português, o conceito por dets da expressão "área protegida privada" não é posse do ICNF nem do Estado. 

A legislação referida permite desde 2009 a designação e reconhecimento oficial destas áreas protegidas privadas. O que a ATN e o ICNF deveriam escrever é que a Faia Brava foi a primeira a ser reconhecida e designada como tal pelo Estado, o que a legislação de facto prevê, mas isso não serve para publicidade tão marcante como o mito que tentam criar. Em termos publicitários, que é que está aqui em causa, é muito mais poderoso escrever «(...) a primeira Área Protegida Privada do país (...)».

O IUCN-International Union for the Conservation of Nature, instituição internacional de que o ICNF é membro, define uma área protegida privada - private protected area - como uma área de qualquer tamanho que é gerida para a conservação da biodiversidade, protegida com ou sem reconhecimento governamental e é propriedade de indivíduos, comunidades, corporações ou organizações não governamentais. Numa clara manipulação do termo, e à revelia da sua definição pela mais credenciada instituição internacional de conservação da natureza que o próprio ICNF integra, o ICNF e a ATN estão a defender que apenas as áreas protegidas privadas reconhecidas pelo Estado são dignas do nome. Mas como já escrevi, a designação e conceito por detrás de "área protegida privada" não são posse nem do ICNF nem do Estado.

É verdade que a ATN se pode escudar nos termos que o então ICNB, agora ICNF, usou e usa para se referir à Reserva da Faia Brava. Inicialmente, o Aviso 26026/2010 de 14 de Dezembro do Diário da República - 2ª Série, n.º 240 é muito sucinto e claro ao escrever que "(...) torna-se público que foi reconhecida a área protegida privada cuja área e entidade gestora constam do despacho de reconhecimento (...)". Trata-se, claramente, do reconhecimento de algo que já existe e não se usa "área protegida privada" em maiúsculas nem o termo 'primeira'.

Mas já o despacho de reconhecimento anexo ao Aviso 26026/2010 é muito mais profíquo em considerandos. Nele se alterna o uso da expressão área protegida privada entre minúsculas e maiúsculas, referindo-se a uma tipologia APP-Área Protegida Privada que a legislação não refere mas que o ICNF criou. Escreve-se ainda a seguinte frase, claramente de índole não técnico mas um mero considerando político e propagandista de um ICNB há anos esvaziado de capacidade de intervenção no terreno e a tentar mostrar trabalho: "A designação desta área protegida assume particular importância por se tratar da primeira área protegida privada (...)" (itálico e sublinhado meus, minúsculas originais). Trata-se de uma frase que ignora o significado de área protegida privada, acima transcrito, para tentar reduzi-lo às áreas que são reconhecidas oficialmente pelo ICNF.

A ATN poderá usar o argumento que se o ICNF o escreve no despacho de reconhecimento e mantém no seu sítio na internet então tem toda a legitimidade para usar esta afirmação. Mas este seria um argumento cínico e ao mesmo tempo revelaria desconhecimento de termos técnicos internacionais, o que nada abonaria a favor da mestria técnica da ATN. A verdade é que ICNF excedeu-se e excede-se ao descrever a Faia Brava como a primeira área protegida privada, numa atitude típica do Estado de que só o que quer ver, em especial quem lhe paga taxas e de algum modo se submete à sua supervisão.

Fui uma das pessoas que brindou esta legislação e num texto online de 2009, anterior ao 'nascimento' da Faia Brava em 2010, que podem ver aqui já enumerava vários projectos de áreas protegidas privadas, que já existiam, que já o eram, e que poderiam pedir o estatudo oficial se assim desejassem. Nessa lista incluí os projectos da LPN, da Quercus e da ATN, a Faia Brava precisamente. Até ao presente, tanto quanto sei, apenas a ATN pediu e obteve esse reconhecimento oficial para a sua área designada como Faia Brava, talvez por precisamente se tratar de um pro-forma que nada muda no terreno nem no dia a dia das organizações que gerem essas áreas protegidas privadas. A Faia Brava recebeu por isso o número 1 nos registos estatais, mas isso não a tornou a primeira, assim como o cidadão português com o número 1 no Bilhete de Identidade não é o primeiro português, nem os bebés nascem no dia em que obtêm o seu cartão de cidadão, nem o automóvel com a matrícula AA-00 00 foi o primeiro automóvel do país. Não é o Estado que cria a realidade, como o ICNF e a ATN parecem desejar.

Após o reconhecimento dos 214 ha da Reserva da Faia Brava, as herdades da LPN em Castro Verde - com 1812 ha, um dos projectos de áreas protegidas privadas que antecedem a Faia-Brava temporalmente e em tamanho - não deixaram de ser uma área protegida privada apenas porque não pediram o reconhecimento oficial, nem o Monte Barata da Quercus - com 600 ha - outra área protegida privada anterior à Faia Brava deixou de o ser. E o mesmo com todas as outras área protegidas privadas pré-existentes.

A própria Reserva da Faia-Brava, com 650 ha, apenas tem 214 ha reconhecidos como reserva protegida privada pelo ICNF no presente. Significa que os restantes não o são? E se o reconhecimento estatal é supremo, de acordo com a publicidade da ATN, será legítimo a ATN usar a designação oficial de Faia Brava, 'dada' pelo Estado a 214 ha para os 436 ha que ainda não obtiveram o reconhecimento oficial? Parece-me, a crer na sua própria publicidade, que é abusivo usarem o nome oficial de uma área protegida privada para terrenos que não a incorporam ainda oficialmente, já que a ATN parece querer fazer crer que apenas o que é reconhecido pelo Estado existe de facto. E as restantes propriedades da ATN geridas para a conservação da natureza são o quê se não áreas protegidas privadas?

Fico também curioso para saber qual a data de fundação da área protegida privada da Faia Brava, após o reconhecimento oficial em 2010 ou 2000 quando o projecto se iniciou? É que eu devia ser muito presciente quando em 2009 já escrevia que existia uma área protegida privada chamada Reserva da Faia Brava, antes de a mesma se vir a tornar na « (...) primeira Área Protegida Privada do país (...)», de acordo com a página da ATN e do ICNF. É curioso que a legislação nunca usa a expressão "Área Protegida Privada" em letras capitais como a ATN faz precisamente porque não é uma marca registada nem um nome exclusivo, apesar de aqui estar claramente a seguir a liderança do ICNF.

A ATN tem uma máquina de marketing eficaz e ainda bem. Mas ao reclamar ser a primeira área protegida privada está não só a faltar à verdade, está a fazer tábua rasa do trabalho de décadas de outras organizações da natureza cujos projectos se anteciparam à ATN e à Faia Brava e cujo trabalho pioneiro permitiu a própria existência da ATN e está também a denegrir o seu próprio trabalho. É uma tentativa de engrandecimento que o projecto da Faia Brava, pelo seu valor, não necessitava. Tudo isto, como já escrevi, para se pôr em bicos de pés, como se tivesse sido a primeira ONG a comprar e gerir áreas para a conservação da natureza.

Considero, por estas razões, muito cínica e enganosa a afirmação que a Faia Brava é a primeira área protegida privada de Portugal. Para essa afirmação ser verdadeira teríamos que entender que em Portugal não existem outras áreas protegidas privadas simplesmente porque não foram ainda reconhecidas pelo ICNF, o que não corresponde à verdade. A afirmação é enganosa porque induz as pessoas em erro, obtendo para a Faia Brava um estatuto de senioridade no país que não é baseado na verdade dos factos, apenas num processo administrativo. A Reserva da Faia Brava foi pioneira em obter o reconhecimento estatal, tão simples e só.

Sejamos, por isso, claros, como o ICNF e a ATN deveriam ser: a Faia Brava foi a primeira área protegida privada a pedir e obter o RECONHECIMENTO oficial. Tudo o resto é uma manobra de marketing cuja falta de soliedariedade institucional para com as outras ONGAs deveria envergonhar a ATN. Usem como publicidade a data em que compraram o primeiro terreno da Faia Brava para a sua criação, 2000. Seria muito mais solidário, ganhavam 10 anos de antiguidade em relação à data do reconhecimento e não estavam a enganar ninguém.

Esta atitude de se vangloriar da ATN dura desde que saiu o reconhecimento oficial para a Faia Brava. Têm razões de sobra para se orgulharem do seu trabalho para necessitarem de recorrer a esta estratégia. A insistência da ATN nesta publicidade enganosa levou a que a Loja de História Natural, que era sócia da ATN via a empresa detentora da marca, tivesse pedido, por minha iniciativa, a demissão de sócio da associação. As razões para tal foram expressas directamente à ATN que no entanto não modificou a sua afirmação. Pessoalmente e profissionalmente, não poderei voltar a apoiar a ATN enquanto perdurar esta sua atitude egoísta e enganadora que infelizmente, até ao presente, recusam corrigir. Gostaria de ver a ATN abandonar esta publicidade enganosa e pequenina.

Como fico indignado sempre que vejo o mito criado pelo ICNF e pela ATN reproduzido publicamente, como vi hoje no tal artigo publicado na Wilder, resolvi finalmente expor as minhas razões. Contactei a Wilder para repor o que considero ser a verdade dos factos e para que não reproduza publicidade enganosa e enviei cópia para a ATN para que saibam que quem anda no mundo da conservação da natureza em Portugal há muitos anos sabe que a Faia Brava não foi a primeira área protegida privada em Portugal. A Faia Brava é a primeira área protegida privada a pedir e obter o reconhecimento estatal. São coisas diferentes.

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